China, julho de 2014
Querido irmão Luiz,
Enquanto lhe escrevo, estou me pé às margens do rio Tumen, na China. Do outro lado do rio, avisto as mesmas montanhas que eles veem todos os dias. Observo as casas em que moram. Posso até vê-los caminhar. Estou a poucos metros de distância do país onde meus irmãos mais sofrem por causa de Cristo. Trata-se da Coreia do Norte.
Em menos de um minuto, eu poderia alcançar o rio e, depois de algumas braçadas, estaria na margem de lá, com eles. Isto é, se eu não fosse impedido por esta cerca de arame farpado de dois metros de altura e mil quilômetros de extensão.
Mas sei que há cristãos norte-coreanos também do lado de cá, escondidos entre a vegetação que ladeia o rio. Parte o meu coração o fato de não poder estar com eles, por questões de segurança que colocariam em risco a minha vida e também a deles – muito mais a deles do que a minha. Cada um de nós seria deportado para seu país natal. Eu seguiria para casa; eles, para o campo de concentração.
Portanto, para ajudá-los, é melhor que eu fique à distância, fazendo meu trabalho aqui, nos bastidores. Aprendi que o serviço à Igreja Perseguida requer pessoas que desejam servir sem precisar de reconhecimento pelo que fazem.
Sem cartões de visita
O pastor Yun* é uma dessas pessoas. Esse chinês lidera uma igreja que mantém as portas abertas para refugiados norte-coreanos, meio que ignorando as severas punições que enfrentará se for descoberto. É necessário manter segredo de sua operação clandestina porque há espiões em todo lugar, até mesmo nos cultos de domingo. Por isso, muitos membros de sua pequena congregação nem sabem que frequentam uma igreja que ajuda refugiados ilegais. Ele recebe, por mês, cerca de dez refugiados, a quem repassa o auxílio financeiro e o treinamento bíblico que lhe damos, assumindo, sozinho, todo o risco da operação.
Outro cristão chinês que serve refugiados norte-coreanos e sabe muito bem dos perigos de ser descoberto é Cho*. Ele conta que faz parte de uma rede secreta de ajuda, mas que não conhece nenhum detalhe do trabalho das outras pessoas, nem o nome delas (que também não sabem o seu).
Por que correr tantos riscos? Risco de prisão, de morte, de perder pessoas amadas por causa de um trabalho desgastante, às vezes solitário, e sempre confidencial. Nada de criar cartões de visitas nem criar contatos profissionais. Quanto menos se souber, melhor.
Tenho uma colega de trabalho que me respondeu a essa pergunta de maneira bastante simples: “Quando comecei esse ministério com as refugiadas norte-coreanas aqui na China, eu sabia que seria difícil. E realmente é. Oro e jejuo antes de cada encontro. Mas os frutos são inacreditáveis. As recém-chegadas abraçam a fé em Cristo muito rapidamente. Sabe, parece que elas só precisam ouvir um apelo para entregar a vida a Jesus. Elas são preparadas pelo próprio Deus”.
O trabalho em si, é, muitas vezes, animador. Cho diz que as pessoas vêm para a China em busca de comida, é claro, mas há convertidos que voltam apenas para aprender mais da Bíblia. Mesmo sabendo que metade dos refugiados é capturado no caminho de ida ou de volta, esses irmãos norte-coreanos se arriscam porque anseiam por receber ensinos cristãos a fim de compartilhá-los em sua terra natal.
A dedicação desses cristãos é, aliás, a maior fonte de encorajamento de quem dá, literalmente, a vida para servi-los. Outro colega, que trabalha há anos em missões entre norte-coreanos, fala que, se precisasse descrever esses irmãos com apenas uma palavra, ele diria que são “fiéis”. Ele explica: “Nem todos têm a Bíblia. Mas graças a seus mestres, eles realmente conhecem a Palavra de Deus e praticam seus ensinamentos. Eu soube que, no auge da fome no país, um desses líderes sentiu-se chamado a reintroduzir o conceito de “arroz sagrado”. Trata-se de uma prática segundo a qual se separa uma porção do arroz para o reino de Deus. Desde então, os cristãos desse grupo não consomem toda a comida que lhes entregamos. Eles guardam parte do alimento para dar a pessoas que se encontram em condições piores. Isso lhes dá a oportunidade de estabelecer a confiança e, mais tarde, compartilhar o evangelho com elas”.
Ilustres desconhecidos
Já é uma grande bênção de Deus o fato de eu poder servi-lo ao lado de pessoas como Yun, Cho e os próprios cristãos norte-coreanos. Mas ele vai além, sendo extremamente gracioso, abençoando com generosidade nossas iniciativas. Apenas no primeiro trimestre deste ano, para lhe dar um exemplo, nossos fiéis colegas discipularam 70 refugiados que, por sua vez, passaram seu conhecimento a cerca de 180 familiares quando voltaram para casa, na Coreia do Norte.
Além do treinamento bíblico, que se mostra a necessidade mais premente da Igreja norte-coreana, também distribuímos, com a ajuda de nossa rede de parceiros na China, alimentos, remédios, Bíblias e livros. Outro projeto magnífico que Deus nos tem dado condições de realizar é a transmissão de rádio com conteúdo bíblico. Ao longo dos anos, “contrabandeamos” cerca de 35 mil rádios. Não temos certeza de quantas pessoas sintonizam nossa estação, mas os líderes que conhecemos nos afirmam que muitos cristãos são bastante encorajados com as transmissões.
Também podemos abençoar os obreiros que tanto se dedicam a esse serviço com um encontro anual, no qual descansam e são revigorados por Deus e por outros irmãos para que assim prossigam em seu chamado.
(…)
Mais uma alma
Aqui, na fronteira entre China e Coreia do Norte, não posso deixar de me lembrar da cena final do filme “A Lista de Schindler”, de Steven Spielberg. Depois de salvar a vida de mais de 1.000 judeus, Oskar Schindler ganhou um anel de ouro como sinal de reconhecimento por seus atos. Mas isso o levou às lágrimas: “Eu poderia ter feito mais! Poderia ter salvado mais uma alma!”, exclama, enquanto olha para os bens que tem em volta de si, dos quais poderia ter aberto mão, a fim de livrar mais um judeu da morte. Seu leal assistente, Ithzak Stern, lhe diz: “Olhe ao seu redor. Haverá gerações graças ao que você fez”.
Ás vezes, sinto o mesmo quando vejo quanto esses irmãos se doam para resgatar mais um norte-coreano. Como pessoa e como membro de um ministério, fiz tudo o que estava ao meu alcance para socorrer mais uma alma? Sim, entreguei alimentos, distribuí materiais cristãos e mais uma porção de coisas. Mas isso é tudo? E fiz a que preço? Parece-me tão pouco.
Devo me ater às palavras de Ithzak Stern: haverá gerações de cristãos norte-coreanos em decorrência do que Deus fez e fará através de nós. É isso que Ele promete em sua Palavra, e é isso que os cristãos norte-coreanos nos dizem. A mim e a você. (…).
Um grande abraço,
Jan Vermeer*
Colaborador de campo
Portas Abertas Internacional
*Nomes fictícios por questão de segurança

Fronteira entre Rússia, China e Coreia do Norte no rio Tumen. Por aí muitos norte-coreanos se arriscam para fugir da miséria. Na Coreia do Norte, cruzar a fronteira sem permissão é crime punível de três a quatro anos em campos de trabalho. Conspirar com alguém para chegar à Coreia do Sul é considerado uma traição. Os infratores são punidos com inanição, torturas e, muitas vezes, execução pública. Foto: Chien-Chi Chang