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Intolerância só com a intolerância (não danço a lambada da censura)

Travesti de lambada e deusa das águas, de Bia Leite, 2013 – uma das obras da exposição Queermuseu. Baseada em um tumblr criado em 2012 chamado ”Criança Viada”, em que adultos mandavam fotos pessoais da infância em poses inusitadas (tudo devidamente autorizado pelos próprios, claro)

A última maior polêmica de todos os tempos da última semana envolveu a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, em cartaz há quase um mês no Santander Cultural, em Porto Alegre, que foi cancelada após uma onda de protestos nas redes sociais encabeçado por grupos organizados. A maioria se queixava de que algumas das obras promoviam ”blasfêmia contra símbolos religiosos e também apologia à zoofilia e pedofilia”.

A mostra, com curadoria de Gaudêncio Fidelis, reunia 270 trabalhos de 85 artistas que abordavam a temática LGBT, questões de gênero e de diversidade sexual. As obras – que percorrem o período histórico de meados do século XX até os dias de hoje – são assinadas por artistas conhecidos internacionalmente como Adriana Varejão, Cândido Portinari, Fernando Baril, Hudinilson Jr., Lygia Clark, Leonilson e Yuri Firmesa.

Não vou entrar no mérito da exposição Queermuseu em si por um motivo muito simples: eu não visitei. Até porque a tal exposição não aconteceu em Manaus. Se fosse, acredite, eu teria ido pessoalmente pra tirar as minhas próprias conclusões. Principalmente porque quando me deparo com histeria coletiva em redes sociais envolvendo recortes descontextualizados, vídeos escandalosamente editados e memes apocalípticos, já fico muito desconfiado (não confio em memes que se levam a sério).

Os ataques ferozes contra essa exposição de arte, pelo que pude notar, foram motivados por dois temas que ainda são considerados tabus pela sociedade brasileira: a religião e a diversidade sexual. Dois temas causadores de discussões intermináveis em fóruns nas redes sociais.

Ok. As críticas à exposição são mais do que legítimas, pois ninguém é obrigado a gostar de uma obra artística. Certo. E pode-se também criticar o fato de que as pessoas não perceberam que a mostra era para adultos. Ok também. Acho deveras importante orientar as pessoas acerca de qual faixa etária é recomendada o consumo de determinado produto cultural (só lembro dos pais que levaram seus rebentos ao cinema para assistir a uma animação pornochanchada chamada Festa da Salsicha (kkk). Pesquisar sobre um filme (ou exposição) faz bem, viu, senhores pais e responsáveis!)

O que não é tolerável é que uma exposição com obras de autores mundialmente reconhecidos seja pressionada a ser cancelada pelos organizadores. Aí o alerta vermelho precisa ser acionado.

Tratava-se de uma exposição que ninguém era obrigado a visitar. E quem compareceu tinha todo o direito de manifestar a sua queixa, desagrado ou entusiasmo – de forma torta ou com embasamento científico, não importa. Faz parte do jogo democrático.

O que não pode, em um país livre, é querer proibir uma manifestação artística. Até porque a fronteira entre a crítica raivosa e a censura é muito sutil (e perigosa), já que todas as intolerâncias costumam ter origem no “não gosto disso” ou ”precisamos proteger algo ou alguém” – um zelo hipócrita usado para atacar aquilo que desagrada alguém, mas que esse alguém não assume de peito aberto (mais cômodo usar as criancinhas como escudo nesses casos).

A História está aí para nos dar essa valiosa lição. O Nazismo não gostava dos judeus e exterminou milhares deles em campos de concentração. Em alguns países de maioria muçulmana, grupos fundamentalistas queimam e destroem templos de minorias religiosas (a religião cristã entre elas). No Brasil, até hoje, terreiros de candomblé são alvos da mesma intolerância religiosa (violenta, na maioria das vezes, tanto no discurso quanto na ação). Ainda hoje, há pessoas que continuam agredindo ou matando gays, lésbicas, trans, bissexuais porque não gostam deles – amparadas no fundamentalismo religioso ou no ódio puro e simples.

E todas essas violências são ancoradas, basicamente, no ”você é diferente de mim, não gosto de você, portanto não deve coexistir comigo”.

E antes que você, caro leitor, ache tais ligações um exagero, alerto: tudo começa no campo do discurso. Na Alemanha nazista, por exemplo, os judeus foram primeiro demonizados, considerados os costas largas de tudo de ruim que havia acontecido aos alemães, antes de serem levados à força aos campos de concentração.

É tudo muito sutil, caro leitor.

Todo ataque à liberdade de expressão é uma porta aberta à intolerância. E, de censura em censura, podemos chegar à barbárie das ditaduras, todas elas implacáveis com as diferenças, sejam elas quais forem.

Por isso, a crítica a uma obra de arte, até mesmo a mais ferina, não pode nunca chegar ao extremo de censurá-la pela força (se bem que a censura fomenta, paradoxalmente, a curiosidade por aquilo que é proibido, enfim).

A arte tem que ser, sim, livre em suas expressões e criações. Não gostou de alguma obra? Pode criticar à vontade ou faça como eu fiz com uma intervenção artística realizada no Largo de São Sebastião, em Manaus, onde um artista se enrolava em panos coloridos, rodeado por uma modesta plateia, enquanto cantava um clássico do Ary Barroso. Fiquei assistindo àquilo uns cinco minutos. Por fim, achei tudo tão confuso e desafinando que caí fora e fui procurar algo pra comer.

Mas em nenhum momento passou pelo meu coração a ideia de retirar aquele artista de lá, silenciá-lo ou proibi-lo de se enrolar naqueles panos enquanto ”assassinava” Aquarela do Brasil. Não mesmo.

Aliás, faço o mesmo com vídeos e textos de gente que prega a intolerância na internet: simplesmente não consumo. Embora não deixe de me posicionar contra os ideias dessas pessoas que jogam contra a evolução de uma sociedade rumo à harmonia, aceitação e respeito entre as diferenças.

Acredito que nada, nem motivos laicos ou religiosos disfarçados de ”nobreza”, deve ser motivo para sacrificar a liberdade. Ou, quando dermos conta, estaremos de volta à escuridão dos porões de uma ditadura.

Ps: bancos estão preocupados é com os lucros, não com a arte e muito menos com a moral e os bons costumes. Aprendam isso, crianças.

Ps2: Agora que a maioria esmagadora da população notou que existem exposições de arte no Brasil, deu até vontade de visitar uma. Aceito convites.

Luiz

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